domingo, 24 de janeiro de 2021

DOIS RELIGIOSOS EM APUROS


 

Por Junior Almeida

 

Em meados da década de 1930, quando o Nordeste ainda vivia infestado de cangaceiros, principalmente com os cabras de Lampião, o Rei do Cangaço, era bastante temeroso transitar pelas estradas e veredas do interior. As notícias de roubos, sequestros, torturas e mortes nos jornais de toda região e principalmente no boca a boca dos apavorados e impotentes sertanejos eram frequentes, mas quem precisava viajar, não tinha muito o que fazer; era rezar para o seu santo de devoção, e pegar a estrada.

 

Foi nessa época que dois religiosos, salvo engano, capuchinhos, resolveram sair de Recife pelo interior de vários estados pregando a Palavra de Deus. Na região de Garanhuns, Pernambuco, os dois frades já tinham ido, montados no lombo de burros, a algumas vilas e povoados, de modo que seus nomes e o seu trabalho já eram conhecidos pelos “matutos”. Muita gente até os aconselhavam, dizendo para que eles tivessem cuidado ao andar naqueles caminhos e, os alertando dos muitos perigos, mas, aqueles homens de fé se diziam “armados” pelo Pai. A fé dos frades parecia inabalável.

 

Em um vilarejo um pouco mais distante da “Suíça Pernambucana” os pregadores chegaram no finalzinho da tarde de um sábado, e as pessoas do lugar já os esperavam. Bem recebidos, os homens de Deus foram levados à residência de um casal com pouco mais quarenta anos com quatro filhos e uma linda cadelinha pequinês, um “doce” de animal. Na casa, os frades iriam tomar banho, comer e pernoitar. No outro dia, domingo, seria o dia das confissões, batizados e a missa, na capela da vila. Na casa em que estavam hospedados, depois do bom e relaxante banho de cuia, com água quente, fervida no fogão de lenha, os padres se sentaram nos tamboretes da sala, esperando a hora do jantar.

 

Já tinha anoitecido e, a residência era iluminada por alguns candeeiros. Enquanto conversavam e brincavam com a cadelinha, que se derretia em carinhos, não parando de balançar o rabo e os lamber, demonstrando muita alegria, os frades perceberam que tinha algo estranho no ar.

 

Primeiro perguntaram por algumas vezes à mulher o nome do animalzinho e, em todas, ela desconversou sem responder. Às crianças, os religiosos também perguntaram o nome da pequinês, mas essas só riam. Depois, os religiosos perceberam um cochichado entre a dona da casa e sua filha mais velha, uma garota de aproximadamente treze anos. Meio sem jeito a mulher explicou que o marido estava bebendo desde cedo numa bodega da vila e, que iria mandar a menina chamar o pai.

 

Os padres compreenderam a situação e disseram estar tudo bem. Depois do jantar os dois frades ainda ficaram na sala a conversar com a mulher e seus filhos, esperando o homem da casa, que já tinha sido chamado pela filha pelo menos três vezes, chegar, mas nada. Deu a hora de dormir e o dito não apareceu. Cansado os homens se recolheram a um quarto preparado para eles. Apagaram os candeeiros e se deitaram. Mal começaram a cochilar, foram acordados pelo latido estridente da cadela da família e com um barulho que vinha do lado de fora. Pelas frestas das telhas ouviam o vozerio que parecia se aproximar da casa. Parecia uma confusão.

 

       Está ouvindo esse barulho, irmão? Perguntou um padre ao outro.

 

Respondida a pergunta, os religiosos perceberam logo que a zoada agora estava em frente à casa, onde um exaltado homem vociferava, sendo contido em parte por outras pessoas, homens e mulheres.

 

    Então eu saio de casa e a mulher bota dois homens pra dentro?! E eu sou o que, algum corno? Disse o sujeito, no momento em que com seu revólver, deu dois tiros pro ar.


Dentro da casa os religiosos entenderam que eles seriam o motivo de tanta confusão. Espantados, a dupla quis fugir. De imediato colocaram os sacos com seus teréns nas costas, mas, como, achavam eles, não deviam nada a ninguém, resolveram tentar conversar com o dono da casa. Em frente à residência, pelo menos uma dezena de pessoas tentavam em vão acalmar o cabra. Nessa altura a cadelinha não parava de latir, acuando as pessoas. Ela olhava pro dono, como se dele esperasse alguma ordem pra morder alguém.

 

Encorajados pela fé, os frades saíram pra rua. O homem da casa, completamente bêbado, de arma na mão, era um poço de ciúmes e fúria. Por sorte alguém tomou seu revólver, se não a desgraça estaria feita. Um pouco mais aliviados por verem o sujeito desarmado, os padres tentaram conversar. A esposa dele, chorando de tanta vergonha, pedia-lhe por todos os santos para ele se acalmar. Nada. O homem só queria briga.

 

Passou a mão em sua cintura procurando outra arma, nem que fosse um canivete, mas não achou nada. As pessoas que o acompanhavam, percebendo suas más intenções, o seguraram.

 

O cabra ruim não se deu por vencido. Sem revólver ou faca, e ainda por cima seguro pela “turma do deixa disso”, resolveu usar sua meiga cadelinha como arma. O animal que só esperava uma ordem virou uma fera quando viu seu dono apontar os padres com a cabeça e ordenar:

 

       PEGA ELES, PRIQUITO. PEGA, PEGA!

 

A cadelinha de nome curioso partiu pro lado dos hóspedes e mordeu logo a batina de um deles, que tentava a todo custo se desvencilhar da cachorra priquito. Os religiosos, temendo o pior, se apressaram em sair pelos fundos da casa, pegar seus jumentos e fugir da vila, sem nem ao menos celebrar uma única missa. O “tranca rua”, só depois de muito tempo se acalmou, mas, quando isso aconteceu os homens de Deus já iam longe.

 

*Foto meramente ilustrativa da internet.

**Texto do livro "Capoeiras: Pessoas, Histórias e Causos".

 

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