Por Rubens Lemos
Durante a viagem não conseguia tirar Djalma Maranhão da cabeça. O homem que me fez conhecer João Goulart, o presidente deposto. Foi numa noite muito friorenta. O local era uma espécie de restaurante, muito mais uma churrascaria, dirigido por exilados brasileiros: ex-deputados, ex-senadores, ex-ministros. Uma espécie de sociedade pouco anônima, patrocinada pelo ex- presidente, como forma de ajudar brasileiros perseguidos pela ditadura. O presidente Goulart me pareceu uma pessoa simples.Nele não havia qualquer traço de arrogância. Não vendia a imagem de líder ou coisa do estilo.
Era o que era no momento:um exilado. Um homem que fora deposto por um violento golpe militar. Djalma lhe contou rapidamente a minha história e João Goulart me deu 3 mil escudos, moeda chilena e da qual iria necessitar. Antes de sair, João Belchior Marques Goulart fez uma previsão:
Maranhão (Djalma) tem pressa em voltar, mas eu acho que os militares não entregam o poder tão cedo. Não é o que eu quero, mas é o que eu penso.
João Goulart tinha razão: a ditadura durou mais de vinte anos.Nem ele, nem Djalma Maranhão puderam ver de novo o Brasil. Os dois morreram no exílio. Em julho de 1971, eu estava em Santiago do Chile, quando vim a saber da morte do ex-prefeito de Natal. Morreu triste e estava só. Seu corpo foi encontrado no pequeno apartamento em que morava, pelo advogado e também exilado Carlos Frederico Marés, a quem conheci no Chile
A música me arrancava, por instantes, do terror em que me encontrava. Até que um grito estourou na escuridão:
Seu nome, corno! O coração bateu mais forte. E a resposta veio mecanicamente:
Rubens, Rubens Manoel Lemos.
Está querendo brincar, subversivo de araque! Eu quero o sue nome de guerra, o nome da Organização, tudo, tudinho, entendeu?
Não tenho nome de guerra.
Uma pancada violenta em atingiu a cabeça. Caí. De repente, chutes. Alguém pulou sobre minha barriga. Vomitei. Puseram-me novamente em pé. A voz sádica do doutor Aníbal:
Vamos fazer uma ligação direta nesse sacana. Aí, ele vai ver que não adianta ser macho.
Amarraram-me a uma cadeira. Um fio foi amarrado no dedão do pé. E uma maquininha começou a funcionar. O choque elétrico. Era como formigas raivosas me penetrando. Depois, como labaredas queimando a alma. Gritei muito. A máquina parou. Os doutores da lei riam. Sem esperar, duas mãos explodiram contra os meus ouvidos.Um golpe terrível que me fez perder a noção das coisas. Em seguida, um soco fulminante no estômago. Desmaiei. Acordei pendurado tal qual um porco. Os pés sustentados em duas latas de óleo, que cortavam. As latas não suportavam o peso, caíam, e eu ficava apenas com a ponta dos dedos roçando o chão. Senti o cheiro da morte. Foi toda uma noite de tortura.
O carcereiro Teles, com o seu sadismo de sempre chegou:
Chileno, vamos ali. Você, hoje, vai conversar com uma pessoa muito importante. É a maior autoridade em subversão da América Latina.
Outra vez o capuz, algemas e pancadas. A voz com sotaque paulistano. O tom direto e cruel. Eu estava diante do Delegado Fleury, que veio de São Paulo para me interrogar. E, antes de qualquer pergunta,me deferiu um violento soco no estômago. Caí, como um saco vazio.
Fleury queria saber dos exilados. Quem era quem. Onde está Bruno Maranhão? E o Sargento Prestes? Eu sei que você morou na casa de Geraldo Vandré.
Ou você conta tudo ou não sai vivo daqui.
A minha resposta foi a mesma:
Desconheço tudo isso.
Uma voz conhecida apareceu na escuridão do meu capuz. Era a voz do Major Alcântara, aquele que comandava os interrogatórios em Natal. Outra voz falou:
Esse imbecil tá pedindo pra morrer.
Fui tirado da cela. Diante de mim, o doutor Fernando, com uma bíblia na mão. Perguntou se eu acreditava em Deus. Respondi que minha formação religiosa era evangélica. Ele falou:
Então você compreende que a própria bíblia justifica a violência. Cristo expulsou os vendilhões do templo à chibatadas. Pedro cortou a orelha de um centurião. Você está aqui para purgar seus pecados. O martírio é necessário para resgatar e purificar almas.
Eu arrisquei a perguntar:
O senhor considera, então, a tortura como um ato de fé religiosa e cristã?
O doutor Fernando chamou o carcereiro Leite e ordenou:
Leve esse canalha. Eu mesmo quero mostrar a ele o que é a bíblia.
Fui torturado por horas seguidas. E a pior tortura ocorreu quando puseram diante de mim um velho chamado Holanda, de Recife. Ele tinha o peito queimado por isqueiro. Um olho estava quase fora de órbita. Como se tivesse acontecido uma briga mortal entre dos galos. O velho Holanda me olhou, altaneiro:
Irmão, eu sei que vou morrer, mas a ele não digo nada!
Diante dos torturadores eu disse:
Não velho. Você não vai morrer. Mesmo que eles lhe matem.
Explodiu dentro de mim uma revolta enorme e, buscando coragem, não sei aonde, comecei a cantar:
Angústia, solidão, um triste adeus em cada mão, lá vai meu bloco, vai só desse jeito é que ele sai (...) Por isso, quando eu passar, batam palmas pra mim...
Gritos e gemidos calaram. E das imundícies das celas, uma voz tímida começou a cantar também. Outra voz de juntou. Outras vozes se juntaram. E os torturados fizeram um coro maravilhoso:
Merece uma homenagem quem tem forças pra cantar, tão grande é minha dor, pede passagem quando sai, por isso só, lá vai meu bloco, vai...
E todos os prisioneiros políticos do DOI-CODI assumiram a música como uma das formas de resistência. Apesar das ameaças do doutor Fernando, coronel à época, cujo verdadeiro nome é Cúrcio Neto. Que torturava presos, lia a bíblia e, depois ia, possivelmente, fazer amor com as mulheres.
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